UM EM DOIS
Uma das faces do Mau Juiz do Fresco de Monsaraz assenta perfeitamente no rosto do Santo do painel do Arcebispo dos Painéis...!!!
Uma abordagem inovadora aos enigmas, mistérios e segredos dos Painéis de onde se extraíram novas pistas e dados que irão contribuir para uma maior clarificação sobre o significado e razão de existência desta obra-prima.
UM EM DOIS
Uma das faces do Mau Juiz do Fresco de Monsaraz assenta perfeitamente no rosto do Santo do painel do Arcebispo dos Painéis...!!!
(in Os Painéis-Últimas Páginas, 2020, 1º capítulo)
O inventário realizado em 1754 aos
bens que o primeiro cardeal-patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, deixou
após a sua morte, inclui o levantamento aos bens móveis existentes nos seus palácios
da Mitra de Marvila e de Santo António do Tojal, nos quais despendeu, antes de
os ir habitar (c.1740), avultadas verbas com obras de remodelação dos
interiores e com as aquisições de diversos artigos para os respectivos
recheios.
No rol relativo ao palácio de Marvila
identificamos mais de 120 pinturas executadas sobre diversos materiais (tábua,
tela, cobre e lâminas de diversos tipos), com dimensões que vão dos 33x33cm até
aos 330x187cm. Os temas descritos são na maior parte religiosos. São citados treze
retratos dos arcebispos de Lisboa e outros seis relativos a pontífices. É indicado
um painel com uma cena de uma batalha. Cerca de três dezenas de pinturas não
têm qualquer descrição, das quais nove foram executados sobre madeira.
Este inventário contém
referências aos painéis que constituíram o Retábulo de S. Vicente que existiu
na capela-mor da Sé de Lisboa e, igualmente, à série dos quatro Santos que terão tido nesta relação a
sua primeira referência documental. Não temos conhecimento de este documento ter
sido alguma vez citado nas mais diversas publicações e artigos relativos à
chamada “questão dos Painéis”, pelo que será mais um inédito a acrescentar aos outros
testemunhos que já divulgámos relativamente a esta temática.
Encontrámos este documento num site[1],
desenvolvido pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, sobre “A Casa Senhorial”. A transcrição paleográfica do
original, que se encontra depositado na Torre do Tombo[2],
foi efectuada por Lina Maria Marrafa de Oliveira[3].
Em
busca dos Painéis
Será que podemos encontrar os
seis Painéis do MNAA neste rol de bens? Para o efeito temos que restringir a
nossa análise apenas às trinta e três pinturas, cujos relatos afirmam que foram
realizadas sobre madeiras (pau, tábua). Vamos agregá-las em quatro grupos:
I- O descritivo relativo aos catorze painéis do Retábulo de
S. Vicente:
· Quatro paineis ao devino de des palmos de alto cada hum e
sinco de largo molduras todas douradas pintura em páo que contem a Vida de São
Vicente Martir. [na caza ante a ultima camera]
·
Mais outo paineis ao devino pintura em pao molduras todas
douradas de dés palmos de alto e sinco de largo que contem a vida de São
Vicente Martir. [na 3ª casa]
·
Mais dois paineis ao devino molduras anogueiradas e os
frizos dourados tambem da vida de São Vicente de quinze palmos de alto e outo
de largo. [na 3ª casa]
II- As narrações referentes aos quatro Santos:
·
Dous paineis mais ao devino pintura em páo hum de Santo
Ildefonço, e outro de São Francisco molduras todas douradas de outo palmos de
alto e sinco de largo cada hum. [na caza ante a ultima camera]
· Dous paineis ao Devino pintura em pao hum de São Pedro, e
outro de São Paulo molduras pretas com frizos dourados de nove palmos de alto e
sete de largo. [na caza ante a ultima camera]
III- Os textos sobre
os nove quadros atrás salientados, executados sobre madeira, que nos fornecem
as suas dimensões, mas que são omissos nos seus descritivos:
· Quatro paineis grandes ao devino pintura em pao molduras todas
douradas de tres palmos de alto e outo de largo pintura gótica. [na 3ª caza]
·
Outro painel ao devino pintura em pao moldura dourada de
tres palmos e meio de alto e dous e meio de largo. [na 3ª caza]
·
Quatro paineis ao devino pintura em taboa molduras pretas
com frizos dourados doze palmos de alto e quatro de largo. [na outra caza
contigua]
IV- Finalmente, para prefazer as trinta e três pinturas
execuadas sobre tábuas, faltam seis painéis que têm dimensões relativamente
pequenas (entre 2x2,5 palmos e 8x2 palmos) e descrições bastante claras: uma
batalha, a Ressureição de Lázaro, Nossa Senhora com o Menino, S. João Batista e
S. João Evangelista.
Assim, logo à partida, os Painéis
não podem estar incluídos nos quadros dos grupos II e IV. No primeiro, devido
aos descritivos dos Santos e, no segundo, não só pelas descrições como também
pelas suas dimensões. Logo, sobram os grupos I e III.
Grupo I
Quanto aos catorze painéis, descritos
como relativos à Vida de S. Vicente Mártir temos:
·
Doze
painéis com as medidas de 10x5 palmos, o que equivale a 220x110 cm, de onde
concluímos que:
o Os
Painéis do Infante (206x128 cm), do Arcebispo (206x128 cm) e, tal como foram
encontrados em S. Vicente de Fora, os dos Frades+Relíquia (207x127 cm) e os dos
Pescadores+Cavaleiros (207x124 cm), terão que ser excluídos porque as suas
larguras não cresceram, entretanto, dos 110 cm (em 1754) para os 124/128 cm
actuais…
o
Os
quatro Painéis laterais (Frades, Pescadores, Cavaleiros e Relíquia) têm um
tamanho médio de 207x63 cms, o que os torna compatíveis com as medidas dos quadros
do inventário, embora sujeitos a cortes na ordem dos 13x47 cm. Contudo, não é
aceitável que o inventariante tenha descrito qualquer uma das cenas destes quatro
Painéis como relativas à Vida de S. Vicente quando, ao longo do Inventário,
demonstrou conhecimentos razoáveis de iconografia na narração de outros
quadros.
o Para além disso, estes quatro painéis já se encontravam
ligados, dois a dois, desde o final do século XVII de acordo com o parecer
conjunto de Luciano Freire[4]
e José de Figueiredo, quando analisaram os restauros anteriores que os Painéis
sofrido[5]:
“Desta época [ainda no século XVII] data também a transformação das
quatro meias portas em dois quadros…”
· Os restantes
dois painéis deste grupo têm medidas individuais bastante significativas, 15x8
palmos, o que equivale a 330x176 cm. Deste modo:
o
Os
Painéis de maior dimensão (Infante e Arcebispo), não podem ser excluídos mas,
cada um teria que sofrer um corte na ordem dos 124x48 cm, o que seria demasiado.
o Contudo,
reparamos que estes dois painéis são os únicos do grupo com molduras “anogueiradas”
e não douradas como os restantes, o que nos levou a pesquisar a cor que as molduras
dos Painéis teriam quando foram encontrados em 1883 no mosteiro de S. Vicente
de Fora[6].
E, de facto, verificámos que Joaquim de Vasconcelos, o primeiro autor a
escrever sobre os Painéis em 1895, quando estes ainda se encontravam neste
Mosteiro, disse que eram douradas[7]:
“b) Dimensões. São exactamente medidas. Alt. 2m,06. Larg. 1m,23 iguaes nos
quatro. Com a moldura lisa, antiga, com um douramento amortecido, mais
0m,25”, de onde concluímos que aqueles dois grandes quadros também não podem
corresponder aos Painéis.
Grupo III
Resta a análise aos nove painéis
executados sobre madeira, discriminados em três itens e que não têm qualquer descrição,
isto é:
·
O
primeiro refere que são quatro painéis cujas dimensões e formatos (3 palmos
altura x 8 largura >> 66x176cm), não são aceitáveis, apesar de ser salientado
que se trata de pintura gótica.
· O
segundo também é de excluir pelo seu reduzido tamanho (3,5 palmos altura x 2,5 largura
>> 77x55cm)
· Sobra
o último item composto por quatro painéis que, pelas suas medidas (12 palmos
alto x 4 largo >> 264x88cm), poderiam corresponder aos actuais quatro
Painéis laterais – Frades, Pescadores, Cavaleiros, Relíquia – com um tamanho
médio de 207x64 cm, mas que implicaria um corte individual de 57x24 cm:
o
Será
que o inventariante, colocado perante uns quadros com muitas figuras cujas
poses seriam inéditas e/ou muito afastadas de qualquer tema ou representação
religiosa, se limitou a não os descrever dada a dificuldade em o fazer
sinteticamente?
o
Contudo,
na data em que foi realizado este inventário, estes quatro painéis já se
encontravam ligados, formando dois pares, como já o comprovámos atrás…
Finalmente, é de afastar a
hipótese de qualquer um dos dezaséis painéis do cadeiral dos cónegos da
capela-mor da Sé de Lisboa, referidos por D. Rodrigo da Cunha[8], poder estar incluído neste inventário, desde logo pela
ausência de qualquer referência ao dístico em latim:
O restante da
capella mòr com tem em 16. paineis, que ficam sobre as cadeiras dos conegos,
muitos milagres do santo, pintados de boa mao, & declarados de igual pena,
cadahum em seu distico latino.
As medidas (214x138 cm) de um
quadro sobrevivente deste conjunto contribui igualmente para inviabilizar tal
suposição[9].
O inventário
de 1754 vs. o de 1821
A parte do inventário de 1821, também
realizado aos bens da Mitra de Marvila, que já analisámos em estudos anteriores[10],
permite validar o presente inventário de 1754, do mesmo modo que este confirma
o de 1821, dadas as coincidências das referências a catorze painéis com o tema
de S. Vicente e às quatro tábuas relativas aos Santos.
Porém, o inventário 1821 revela
um pouco mais sobre as cenas patentes nos painéis de S. Vicente dado que cita a
presença, em dois painéis, “de um rei, de relíquias e de milagres” e,
num outro, relata a existência de “um cofre com relíquias, de vários
religiosos e também de um rei”.
Verifica-se que, neste intervalo
de 67 anos, ocorreram algumas alterações (ver adiante as tabelas comparativas):
· Mudanças na localização dos painéis de S. Vicente que,
anteriormente estavam em duas divisões, foram depois repartidos por cinco
divisões, e os Santos que se encontravam na mesma sala aparecem agora em
duas.
· Eventualmente devido a estas deslocações e de modo a se
inserirem nos novos espaços ou decorações, constata-se que todos sofreram reduções
nas suas dimensões.
· Dado que se mantiveram as mesmas molduras (reconhecidas
através das respectivas cores descritas nos dois inventários) deduz-se que
estas acompanharam a redução das dimensões destes painéis.
Recordemos as descrições
constantes no inventário de 1821 relativas aos painéis da Vida e Milagres de S.
Vicente[11]:
Os quatro Santos foram descritos neste inventário de 1821 do seguinte modo[14]:
Tabelas
comparativas
As duas tabelas seguintes
apresentam um resumo do essencial que extraímos dos dois inventários e a sua
comparação com os actuais Painéis, Martírios
e Santos.
No caso da tábua e meia dos Martírios verifica-se que as suas
dimensões são ligeiramente superiores às medidas dos painéis descritos
inventário de 1821 como Vida de S. Vicente ou Milagres de S. Vicente, o
que poderá, eventualmente, pôr em causa o facto, geralmente assumido, de que
estas tábuas seriam as únicas sobreviventes do Retábulo de S. Vicente…
Quanto aos Santos nota-se que, no espaço de tempo decorrido entre os dois
inventários, houve uma primeira tenção de igualar as dimensões dos painéis de
S. Pedro e de S. Paulo às medidas dos outros dois santos, Sto. Ildefonso e S.
Francisco (176x110 cms) só que depois, estes dois sofreram cortes nas suas
alturas.
[1] http://acasasenhorial.org
[2] Torre do Tombo, Orfanológicos, Letra C, Maço 82, nº1
[3] http://acasasenhorial.org/acs/index.php/pt/fontes-documentais/inventarios/378-d-tomas-de-almeida-1754-2
[5] FIGUEIREDO, José de – O Pintor Nuno Gonçalves, 1910, p.39
[6] No Inventário de 1821 estes dois painéis
mantêm as “molduras de nogueira”
[7] VASCONCELOS, Joaquim de – Taboas da
Pintura Portugueza do Seculo XV, in O Commercio do Porto, 27/07/1895 (sublinhado nosso)
[8] CUNHA, D. Rodrigo da – História Ecclesiastica da Igreja de Lisboa, 1642.
[9] http://www.matriznet.dgpc.pt/ Veneração a S. Vicente, início séc. XVI, Amaro do
Vale, MNAA
[10] Novos Documentos, Novas Revelações, 2014 // Os Painéis, o Retábulo de S.
Vicente e os Documentos, 2019
[11] SALDANHA, Nuno – Transitoriedade e
Permanência: a Pintura de S. Vicente de Fora, 2010, (ANTT, Bens da Mitra,
Mitra Patriarcal de Lisboa, s/ cota, 68 maços)
[12] Assumimos, erradamente, no nosso segundo estudo – Os
Painéis de S. Vicente de Fora - Novos Documentos, Novas Revelações – que esta palavra seria “outro”, no
sentido de “outros quatro palmos”, quando de facto deve ser lida como “oito”.
[13] Nos estudos anteriores utilizámos a medida (11 palmos) adiantada por Nuno
Saldanha, apesar de ter notado a discrepância com o valor (9 palmos) publicado
por Pedro Flor. Questionámos então estes autores sobre qual destas medidas é que
estaria correcta ao que nos responderam que mantinham o valor que constava nos
seus estudos… Faz-se agora a respectiva rectificação, apoiado nos dados do
Inventário de 1754.
[14] FLOR, Pedro, – A Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, 2010, (ANTT, Mitra Patriarcal de Lisboa, Maço
57, Inventário dos bens pertencentes ao
Excelentissimo Cardial Patriarca, fls 64, 73v, 89v e 94)
[16] Inclui a descrição de relíquias, milagres e um rei agradecendo ao santo
[17] Inclui a descrição de um cofre com
relíquias, religiosos e um rei
[18] Duplicámos a largura actual da meia-tábua
[19] Tal como foram encontrados no Mosteiro de
S. Vicente de Fora, em 1883
[20] Prelado com alva, mitra e bago
[21] N.B.: Medidas expressas em varas, onde 1
vara = 110 cms
No dia 9 de Fevereiro o jornal Público disponibilizou um “site” que reúne os artigos, que já publicou e que irá publicando, relativos ao restauro dos Painéis actualmente em curso.
Um antepassado de Jean Jouffroy?
(c. 1425, Robert Campin, museu Thyssen-Bornemisza, Madrid)
O frade de barbas representará, também, Sto. André?
Stº André (séc. XVII/XVII, Autor anónimo, Igreja de Nossa Senhora da Caridade, Reguengos de Monsaraz - posição invertida para melhor comparação)