27 de outubro de 2019

Uma síntese da história dos Painéis e do Retábulo de S. Vicente,
segundo algumas das Provas Documentais

  1. “Visitações”: de acordo com o teor de oito destes testemunhos as obras mais intensas no Retábulo de S. Vicente, situado junto ao altar deste santo colocado na capela-mor de Lisboa, tiveram início em 1462 e prolongaram-se até 1473. Tinham como objectivo dignificar o local onde se encontravam as relíquias deste santo. Os fundos necessários para estes trabalhos foram recolhidos junto dos fiéis sob a forma de esmolas, que em troco recebiam indulgências equivalentes a quarenta dias de perdão. D. Afonso V foi um destes contribuintes. A gestão das obras e dos fundos ficaram a cargo da Igreja.
N.B.: Nestes textos nunca é destacado, ou pelo menos referido, o papel de S. Vicente “…como patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe…”, apesar do começo das obras já ter ocorrido depois da conquista de Alcácer-Ceguer (1458), de as mesmas estarem em curso no tempo das tentativas falhadas em tomar Tânger (1462 e 1463/1464) e durante as vitórias conseguidas em 1471 (Arzila e Tânger). Por este facto os painéis, que integravam o Retábulo, só podiam se relacionar com a vida, martírios e milagres do santo.

  1. “Os pareceres de Francisco Pereira Pestana”: ao explanar os seus pontos de vista, dirigidos a D. João III, sobre a estratégia a seguir nas praças norte-africanas (c. 1532), convida, a dado passo, o soberano a ir visitar a Sé e admirar e “…ver aqules famosos Reis Armados, tão fermosos e gentis-homens…” como forma de o incentivar a passar à acção militar.
N.B.: Estes dois pareceres são as primeiras referências que se podem aceitar como sendo relativas aos Painéis. O modo como o autor o faz permite inferir que esses quadros eram não só belos mas também uma novidade naquele local. Fazem referências não só aos painéis de maior dimensão, mas também aos dos Frades e dos Cavaleiros

  1. “O Documento do Rio”: Este manuscrito anónimo elaborado por volta de 1600, vem confirmar a presença dos Painéis de maior dimensão junto ao Retábulo do altar de S. Vicente “…em baixo…estavam dois painéis em que estava pintado S. Vicente em figura de moço de 17 anos em cada retábulo e painel…e a figura de S. Vicente estava virada uma para outra de maneira que mostrava a si cada parte do rosto…e outras muitas figuras de homens…e tinham nas cabeças uma caraminholas muito altas de veludo…há muito que não vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já aí estes painéis, dirão os cónegos onde estão.”
N.B.: Este documento testemunha que os Painéis (do Infante e do Arcebispo) estiveram junto ao Retábulo mas que, naquela data, já tinham sido retirados para local incerto. Assim no altar de S. Vicente ficariam apenas os painéis do Retábulo executado entre 1462-73.

  1. “A descrição de D. Rodrigo da Cunha”: O texto deste arcebispo de Lisboa (1642) fornece-nos a descrição mais detalhada que se conhece do Retábulo de S. Vicente “…neste espaço se levanta o altar do santo, de que logo nasce o retábulo com a sua imagem de vulto no meio, com a palma de mártir na mão direita, e a nau em que nos foi trazido, na esquerda. Seguem-se pelos mais painéis de retábulo de pintura singular, vários milagres do santo, com os passos principais de sua vida, e martírio.”
N.B.: Este trecho vem confirmar o motivo da execução do Retábulo em 1462-73: prestar devoção a S. Vicente através de um conjunto painéis que ilustrassem a sua vida, martírios e milagres. Como é óbvio, não é feita qualquer a referência aos Painéis que como vimos, no “post” anterior, já tinham sido retirados.

  1. “O apeamento do Retábulo”: Num códice recolhido por Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, e publicado em 1791, é afirmado que, em Novembro de 1690, todo o conjunto do velho Retábulo do altar de S. Vicente foi retirado para ser substituído por um outro.
N.B.: O novo retábulo, que se pautou pela grandiosidade da sua arquitectura, ficou concluído no início do século XVIII mas acabou por se desmoronar completamente com o terramoto de 1755.

  1. “Os documentos de 1763-68”: Um conjunto de textos datados do período 1763-68, contêm uma série de pormenores muito importantes relativos aos painéis do Retábulo retirados da Sé em 1690 (ver ponto anterior). Referem que ficaram guardados numa dispensa da Sé até que em 1742 o Cardeal Tomás de Almeida os mandou recuperar e enviar para o palácio da Mitra (Marvila). Revelam que aqui se encontravam mais de 12 painéis com imagens do mártir S. Vicente, pintados pelo mesmo artista. Um destes mereceu particular destaque, não só por ser um dos maiores, mas também por ser o único onde se viam religiosos e um cofre que continha as relíquias do santo.
N.B.: O envio destes quadros para a Mitra, permitiu que se salvassem dos efeitos do terramoto de 1755.

  1. “O Inventário da Mitra de 1821”: No rol de bens incluídos neste inventário constatamos que os painéis do Retábulo (ver ponto anterior) ainda estavam depositados no palácio de Marvila. O inventário descreve 14 painéis com imagens de S. Vicente e fornece-nos as respectivas medidas, que não compatíveis com as dos Painéis. Confirma a existência do painel destacado no ponto anterior (religiosos e um cofre com as relíquias), tanto pelo seu descritivo como pelas suas dimensões.
N.B.: Concluímos assim que em 1821 ainda existiam os painéis que tinham integrado o Retábulo de S. Vicente. É assim possível seguir o seu percurso ao longo de 450 anos: 1462-73 (execução); 1690 (apeados e guardados numa dispensa da Sé); 1742 (recuperados e remetidos para o palácio da Mitra); 1763-68 (na Mitra são referenciados mais de 12 painéis); 1821 (são inventariados 14 painéis); 1916 (é incorporado no MNAA o único painel sobrevivente e completo, que pertenceu ao Retábulo, segundo o estudo que Adriano de Gusmão faria em 1957 – S. Vicente atado à Coluna).

  1. “As análises dendrocronológicas de 2001”: Os resultados publicados relativos às análises efectuados às 22 pranchas que constituem as tábuas dos Painéis às 6 da tábua e meia dos Martírios, (os painéis que restam do Retábulo de S. Vicente), permitem concluir que na montagem destas superfícies foram utilizados lotes de madeiras diferentes, o que não aconteceria se fossem preparadas para a mesma obra pictórica. Nos Painéis a datação dos anéis de crescimento mais recentes encontram-se entre os anos 1383-1431, enquanto nos Martírios esse intervalo foi de 1435-1454.
N.B.: A título de curiosidade estes resultados, apurados para as 13 pranchas dos quatro painéis dos Santos (atribuíveis à mesma “escola” de pintura), já abarcam um período coincidente com os outros dois conjuntos (1415-1454).

  1. “O estudo laboratorial de 2013”: O relatório das análises microscópicas efectuadas aos materiais constituintes das preparações base aplicadas sobre as 12 tábuas atribuídas à “oficina” de Nuno Gonçalves (6 Painéis, 2 Martirios e 4 Santos) apresentam resultados contundentes como se lê nesta citação: “verificou-se que existem diferenças de composição na camada preparatória entre o Políptico de S. Vicente – os Painéis – e as pinturas dos outros dois grupos que sugerem que no primeiro terá sido usado um lote de “gesso” diferente”, o que prova que os Painéis foram executados num tempo diferente dos outros dois grupos.
      N.B.: Porquê o silêncio existente sobre os resultados apurados por estes exames laboratoriais, supervisionados pela Universidade de Lisboa?

  1.  “Os Painéis do MNAA”:
Terminamos esta sequência de notas com um extracto que Dagoberto Markl, distinto historiador de arte e defensor da tese vicentina, escreveu sobre as outras teorias interpretativas dos Painéis: “Todavia, o “pecado” maior tem sido o de em nome de uma suposta originalidade ignorar-se, por completo, o acervo documental já existente e que exige, da parte de quem se debruça sobre o tema o seu pleno conhecimento”, in “Nuno Gonçalves – Novos Documentos”, IPM, 1994, p.27.
Palavras aceitáveis e até defensáveis, atendendo aos documentos que se conheciam na altura. Contudo, e passados 35 anos, será agora o momento da “teoria oficial” não ignorar, por sua vez, o conjunto de novos testemunhos que entretanto surgiram, assim como as ilações que deles se extraem.
Referimos em especial, entre outros, a: sete “Visitações” (1462-1517), um outro parecer de Pereira Pestana (c.1532), o Inventário da Mitra de 1821, as análises dendrocronológicas de 2001 e o estudo laboratorial de 2013.

N.B.: O objectivo do nosso último estudo visou basicamente separar documentalmente os dois conjuntos de pinturas (Painéis e Retábulo de S. Vicente), isto é, o significado dos Painéis não pode ser suportado por provas que apenas dizem respeito ao Retábulo de S. Vicente