5 de outubro de 2023

APRECIAÇÃO CRITICA DO PROF. VÍTOR SERRÃO

 

SOBRE OS PAINÉIS: A SURPRESA QUE NOS TRAZ UM NOVO DOCUMENTO

A História da Arte constrói-se a partir de minúsculos interstícios: fragmentos, esboços, entrelinhas de documentos, testemunhos de arquivo. Nasce da nossa capacidade de exercitar as microscopias e enfrentar as desmemórias. No caso da secular Querela dos Painéis de São Vicente, mais que o sensacionalismo das grandes teses, tem sido o saber nascido da pesquisa séria que vai lavrando pistas e sedimentando os saberes.

Desde a ´revisão de um processo arquivado’ feita por Dagoberto Markl (1988) ao chamado Documento do Rio de Janeiro (o qual descreve, no tempo de D. Sebastião, os Painéis de São Vicente como existentes na Sé) que não surgia um documento tão importante para a magna Questão Nuno Gonçalves ! Coube agora a Clemente Baeta, no recente livro Os Painéis fora do Labirinto (2023), o mérito deste achado.

É uma preciosidade: trata-se de uma carta de 3 de Setembro de 1491 escrita a D. João II pelo célebre Cardeal Alpedrinha, D. Jorge da Costa, arcebispo de Lisboa, e cujo teor só se percebe à luz do que nos diz o Doc. do Rio de Janeiro sobre o facto de o rei ter mandado pintar o rosto de seu filho sobre o de São Vicente nas duas tábuas maiores existentes no altar vicentino da Sé.

Escrita a seguir à trágica morte do Infante D. Afonso (1475-1491), filho único de D. João II (e herdeiro do tão desejado trono ibérico), na queda do cavalo a 13 de Julho na Ribeira de Santarém, é uma missiva de condolências da parte de quem, tendo sido exilado em Roma por ordem régia, não nutria especial amizade pelo monarca … E tal antipatia não é ocultada pelo tom dessa carta escrita em Roma em que, a dado momento, o Cardeal-Arcebispo critica o rei por não lhe ter dado ouvidos: «… que não adorásseis vosso filho, que não era oficio de Rei Cristão adorar a outrem senão a Deus…», já que «o pecado da Idolatria nunca o quis dissimular sem alguma espécie de castigo e pena». A seguir, vitupera o monarca enlutado por não ter seguido o seu avisado «conselho» (sic): «…V.A. não amava o seu filho, mas adorava-o, e quanto é ao que fora padecia do amor de Deus, e das cousas Dele parecíeis esquecido… porque parecíeis imitar os Antigos que mandavam fazer imagens de seus filhos, e as mandavam adorar, o que não devia fazer Principe Cristão que amar a Deus mais que os filhos» (BNP, Reservados, Cód. 3776, fls. 17 a 20).

Este contributo de Clemente Baeta (autor que não sigo, porém, na extensão das suas teses) é deveras relevante para a questão dos Painéis, pois coloca mais uma vez na Sé os Painéis de S. Vicente e reforça o que diz o anónimo relator do Doc. do Rio de Janeiro (c. 1570-80) a respeito do repinte ideológico (chamemos-lhe assim) mandado fazer por D. João II nos rostos centrais de S. Vicente (nos painéis ditos do Infante e do Arcebispo) com a efígie do seu filho, e que os exames laboratoriais de 1994 confirmaram sem reservas. Assim, o Príncipe D. Afonso, que pelo casamento com a filha dos Reis Católicos estava fadado para governar o maior império cristão universal, merecia ser adorado na sua dupla dimensão humana e ‘quase divina’ pelos augúrios da Política – um projecto que a tragédia de Santarém veio brutalmente anular, o que, com tanta crueza de palavras, D. Jorge da Costa destaca na sua carta atribuindo-lhe… castigo divino.

Ou seja:

1. em 1491 os Painéis estavam na Sé;

2. o retrato do malogrado príncipe cobria o de S. Vicente nas tábuas ditas do Infante e do Arcebispo;

3. o ‘repinte ideológico’ fora feito antes do casamento de D. Afonso com a princesa D. Isabel de Castela em Estremoz (3 de Novembro de 1490).

4. tal apropriação iconográfico-identitária provocava críticas nos círculos de detractores do rei.

5. os exames laboratoriais dos Painéis confirmaram tal refazimento das duas faces do Santo, dando crédito às fontes documentais.

Assim, a carta de D. Jorge da Costa a D. João II de 1491, sem explicitamente se referir às pinturas de Nuno Gonçalves, torna-se um valiosíssimo documento (mais um !) para reforçar as valências do testemunho do chamado Doc. do Rio de Janeiro.

No momento em que as tábuas quatrocentistas estão a ser alvo de um exame laboratorial no M.N.A.A., é altura própria para se apurar o assunto do repinte dos rostos do Santo. E termino estas notas de leitura do último livro de Clemente Baeta, autor que nos traz (não sendo ele «vicentista») um valioso contributo documental para a questão ! O que não teria Dagoberto Markl (1939-2010) avançado e escrito nesta eterna discussão painelística se tivesse tido conhecimento desta carta !


Comentário adicional

O livro de Clemente Baeta (o nono sobre os Painéis !) é interessante, como os anteriores, e traz sempre releituras de fontes conhecidas e/ou novidades (como é o caso) sobre o magno problema da H. Arte portuguesa. Não estou de acordo com a sua tese fundamental (nesta matéria, sou vicentista, gonçalvista e... dagobertista, e ele é só... gonçalvista) mas como sempre tenho dito, mesmo nas teses mais infundadas sobre os Painéis se descobrem luzes. Mesmo Henrique Loureiro escreveu, numa tese erradíssima, pp. admiráveis sobre o Arcebispo dos Painéis. E Teresa Schedel sobre o Vereador. E Bélard sobre inúmeros detalhes. etc. etc. O tema PAINÉIS DE S. VICENTE precisa cada vez menos de sectarismo e mais de lucidez. Salvo o pintor, salvo a cronologia (e, diria, sobre o Santo, S. Vicente), sabemos tão pouco ainda ! Para já nem falar da identidade das maioria das maioria das 60 personagens...


N.B. Estes textos foram publicados no grupo "Micro-História da Arte" do Facebook (25/09/2023) pelo o Prof. Vítor Serrão dando destaque ao subcapítulo "Uma carta de condolências" do nosso estudo "Os Painéis fora do Labirinto".


4 de outubro de 2023

UM DOCUMENTO FUNDAMENTAL E DECISIVO

Agradeço ao Vítor Serrão a referência que me fez no seu recente "post" relativo aos Painéis.

Contudo, e segundo a nossa opinião, o capítulo mais importante do último livro, Os Painéis fora do Labirinto, é aquele sobre o Documento Pereira Pestana que temos vindo a estudar desde 2014. Esta análise tem acompanhado os sucessivos acrescentos que trouxemos a este testemunho, cuja pequena frase inicial, publicada em 1936 por Motta Alves, cresceu até se constituir em dois períodos interligados entre si.

O relato destas evoluções pode ser consultado no referido capítulo assim como o estudo minucioso que lhe fizemos.

No essencial Pereira Pestana informa (c. 1532) D. João III que na capela-mor da Sé de Lisboa surgiram uma imagens que foram colocadas junto aos túmulos régios ali existentes (D. Afonso IV e mulher). O autor sublinha precisamente esta zona, colocada à esquerda da capela-mor e não o lado direito onde se encontrava há muito (1462) o Retábulo de S. Vicente constituído pelos painéis com cenas da vida, martírios e milagres deste santo, o que indicia uma novidade que o rei desconhecia.

As descrições sintéticas que Pereira Pestana fez dessas imagens permite identificar os Painéis do Infante e do Arcebispo (gentis homens), dos Cavaleiros ( cavaleiros) e dos Frades (de arminhos). Este descritivo já era aceite pela tese vicentina (salvo o dos Frades). No entanto esta tese ainda desconhecia o texto que iria revelar onde esses Painéis tinham sido colocados na capela-mor.

É assim clara a separação física que se registava, em c.1532, entre os Painéis e o Retábulo pelo que se concluiu que aqueles nunca fizeram parte deste conjunto retabular.

Contudo, o Documento do Rio informa que, por volta de 1570, os Painéis do Infante e do Arcebispo estavam em baixo junto ao Retábulo de S. Vicente...,mas, também diz, num outro item, que do lado esquerdo da capela-mor, junto aos tais túmulos régios, existia um retábulo.

Assim, só se pode concluir que no intervalo de tempo compreendido entre c.1532 e c.1570, houve um deslocamento dos Painéis de maior dimensão para junto do Retábulo, tendo os outros quatro ficado no local onde foram colocados.

Que outra leitura e interpretação é que se pode dar ao Documento de Pereira Pestana lido na sua totalidade?

Reconhecemos que se trata de uma conclusão muito polémica, dado por em causa a tese oficiosa sobre os Painéis segundo a qual estes integraram desde sempre o Retábulo de S. Vicente.

Recomendamos por isso uma leitura muito serena e isenta de ideias pré-concebidas.

A conclusão que fizemos a este Documento está assim alinhada com o Estudo Laboratorial de 2013 realizado ao conjunto de pinturas atribuídas a Nuno Gonçalves (Painéis, Martírios e Santos) que refere em síntese:

"Verificou-se que existem diferenças na camada preparatória entre o Políptico de S. Vicente [os Painéis] e a pintura dos dois outros grupos que sugerem que no primeiro terá sido isado um lote de "gesso" diferente".

De referir que este estudo foi dirigido por José Mendes que integra a actual equipa que está a efectuar o Estudo, Conservação e Restauro dos Painéis.

Se Motta Alves tivesse tido, em 1936, a possibilidade de recolher a informação e publicá-la, de acordo com o actual texto do Documento de Pereira Pestana, o que é que teria acontecido à "Questão dos Painéis"...?

N.B. Este texto foi publicado inicialmente no grupo "Micro-História da Arte" do Facebook (26/09/2023) como "resposta" ao destaque que o Prof. Vítor Serrão deu ao subcapítulo "Uma carta de condolências" do nosso estudo "Os Painéis fora do Labirinto".

Publicamos noutra entrada o referido destaque dado pelo citado professor de história de arte.